Nas últimas semanas, muito se falou do motu proprio “Traditionis custodes” (Guardiões da Tradição) que o Papa Francisco publicou no dia 16 de julho, a propósito da proibição das celebrações do rito romano na forma antiga, anterior a 1970.
Deixei serenar os ânimos, seja do lado católico tradicionalista (bi-ritualistas ou tridentinos), seja do lado católico reformista (missa nova), pois a questão é muito mais ampla do que se julga à primeira vista. Os mais incautos pensarão que a questão se resume à celebração em língua latina, logo um grande equívoco. Ou na disposição do altar versus Deum (ad orientem), voltado para Deus e para o oriente, ou versus populum (voltado para o povo).
O latim foi e continua a ser a língua litúrgica do rito romano, seja ele o do missal de São Pio V (séc. XVI até 1962) ou do missal de São Paulo VI (1970 – atualidade). O próprio Concílio Vaticano II que os reformistas trazem sempre na boca, inscreve na constituição sobre a Sagrada Liturgia “Sacrossanctum Concilium” que o latim continuará a ser a língua da liturgia e língua oficial da Igreja Católica, bem como a música sacra e o canto gregoriano a sua expressão musical. Contudo, permite às Conferências Episcopais de cada país a celebração na língua vernácula ou materna. A permissão tornou-se regra e hoje poucos ou nenhuns participam ou sabem participar numa Missa celebrada em latim. O próprio Papa Francisco no novo documento que emitiu refere que aqueles que preferem continuar a celebrar na forma antiga o façam, mas que as leituras da Bíblia sejam em vernáculo obrigatoriamente.
Quem me conhece sabe que sou um apaixonado pelas línguas clássicas, tendo tido uma formação clássica, onde estudei latim e grego. Amo as línguas latina e grega.
Por esta razão, reduzir todo este debate à questão do latim é uma falácia. Primeiro porque o latim é e continuará a ser a língua oficial da Igreja Católica. Língua nobre lexicalmente que permite a correção nas traduções, sem equívocos. Como língua que não é falada hodiernamente, não sofre a corrupção dos tempos nem a ambivalência semântica.
Outra desculpa falaciosa é a de que ninguém a entende porque não é falada. Como qualquer língua não materna, para ser entendida tem de ser estudada. E os mais velhos recordar-se-ão que os missais do rito romano antigo eram bilingues, com ambos os textos em paralelo, português e latim. A maioria dos reformistas, ignora até que na tradução portuguesa do Missal Romano, tem no final, o Ordo Missae (ordinário da Missa) em latim no novo rito romano. Por essa razão, o latim não é o fator de divisão, mas seria até de concórdia. Até há 25 anos, em qualquer liceu ou escola secundária, havia sempre turmas de latim, porque ele era fundamental para os estudos da advocacia ou eclesiásticos. Hoje, como vimos nos recentes exames nacionais, apenas 11 (onze) alunos em todo o país realizaram exame a latim.
O sistema educativo português parece querer ignorar e remeter ao esquecimento o estudo das línguas clássicas, e quanto mais assim for, maior será a corrupção da língua portuguesa, ela uma filha do latim, do seu léxico, da sua gramática… enfim, um dia destes, nem em português nos entenderemos.
Sou e sempre serei um defensor do latim, não por ser um saudosista, mas porque sei do seu verdadeiro valor e riqueza. Sei-o por experiência própria o sentido de unidade que pode dar aos católicos neste mundo globalizado. Nas viagens e peregrinações que realizo com os alunos a Roma,
Compostela, Fátima ou outros locais pelo mundo fora, em vários momentos e celebrações, partes da missa são cantadas ou proferidas em latim. Ensino aos meus alunos o Canto Gregoriano e a forma de cantar o Pater noster (Pai nosso) em latim. E vi a sua alegria, no Vaticano, Compostela ou Fátima, ao entoarem a bons pulmões a oração do Senhor. Deu sentido à unidade e pertença à comunidade católica (universal, no sentido original da palavra católico).
O que moveu o Papa Francisco ao publicar o motu proprio foi a sua preocupação com alguns grupos que negam a hermenêutica da continuidade, retirando o Concílio Vaticano II da legítima sucessão de concílios ecuménicos, e por sua vez, negam a reforma litúrgica, o diálogo inter-religioso e ecuménico, a liberdade religiosa, etc…
Nós sabemos que eles existem, mas tomar o todo pela parte parece redutor. Repôs a autoridade episcopal na concessão da permissão de celebração com o rito romano do missal de 1962, cabendo ao bispo a permissão da celebração, a indicação do local e hora bem como a nomeação de um vigário para orientar essa porção do povo de Deus. Ao bispo cabe sempre a autoridade sobre as celebrações na sua diocese.
Concluindo, já tive a oportunidade de participar na missa em diferentes ritos católicos, pois a Igreja Católica possui mais de vinte ritos. Já participei na missa, além do rito atual de 1970, em rito romano antigo (missal de 1962), no rito greco-católico ou bizantino (Domus Pacis em Fátima – capelania ucraniana), rito maronita (Líbano), arménio-católico e copto-católico (Jerusalém) e em partes do rito bracarense e moçárabe.
Penso que há lugar para todos e que a variedade só nos traz riqueza e cultura. Saber grego, latim ou hebraico, ou qualquer língua antiga ou moderna, em nada nos diminui, antes pelo contrário, aumenta-nos o saber, a cultura e a mundividência. Salvemos a nossa cultura e o estudo das línguas clássicas, senão qualquer dia destes, ninguém lerá um epitáfio medieval, um manuscrito conventual, ou entenderá as missas de Requiem de Mozart.
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